A última vez que a tinha visto havia sido em julho de 1935.
“Para com isso, você sempre me deixa envergonhada”.
Ela levantou da mesa, foi atender um casal de senhores que entraram na cafeteria. Eu sempre vinha vê-la nos seus intervalos, tomávamos café e conversávamos bobagens. Eu estava lá todos os dias vendo-a andar pra lá e pra cá enquanto atendia alguns rostos estranhos com o sorriso mais lindo do mundo. Algumas vezes eu ia até o wurlitzer e colocava Glenn Miller só pra ver ela tentando conter os passos e o balançado enquanto servia algumas xícaras de café, ela sempre ria porque sabia que eu fazia por causa disso. Era lindo ela sorrindo com aqueles lábios vermelhos, pele clara e cabelo preto. Todos sempre a olhavam.
Era como se ela fosse a minha única companhia, ia lá para vê-la e pra ter motivos pra sorrir. A vida de um jornalista nunca é fácil, sempre muita coisa ruim nos cerca, às vezes é bom ter uma cafeteria com a felicidade atendendo você e depois sentando pra conversar. Faz bem, ela me fazia bem. Algumas vezes até larguei o editorial mais cedo pra pegar o final do expediente dela. Nós nunca saímos, nunca a convidei pra sair, ela era tão linda, não fazia sentido eu cortejá-la com meu desprovimento de beleza. Tínhamos aquelas poucas horas semanais e isso já era o suficiente pra me deixar feliz o final de semana inteiro.
Nesse dia de julho eu havia acabado de receber uma proposta de um jornal em uma cidade do oeste, aceitei. Fui correndo falar pra ela, quando me dei conta do que estava fazendo. Nunca mais teria aquele café na esquina. Nunca mais teria ela sorrindo. Sentei e pedi o bom e velho café preto aguado e sem açúcar, ela chegou e sentou na mesa de frente pra mim. Estava radiante.
“Você está linda, L.”
Ela sorriu e disse algumas palavras, levantou e atendeu a mesa. Quando ela sentou de volta eu já não tinha mais certeza se queria o novo emprego. Aquele andar e aquelas pernas não fariam mais parte dos meus dias, como isso iria ser bom? Conversamos mais um pouco, acho que sobre política e filmes que passavam na época. Prometi a ela que iríamos ver Glenn Miller tocar no primeiro mês de férias que eu tivesse no novo emprego, eu voltaria só pra isso.
“Não seja tolo, vocês jornalistas nunca têm férias.”, ela riu.
Mas prometi, e tenho mania de cumprir minhas promessas. Dei meu novo endereço e peguei o dela, escreveríamos postais um ao outro. E então eu parti. Tomei meu último gole daquele café horrível e admirei o seu andar pela última vez.
Trabalhei como um condenado naquele ano. Foram entrando semanas e mais semanas e fui esquecendo de como aquele sorriso era importante pra mim. Acabei não escrevendo pra ela e nunca recebi nada. Nas comemorações de final de ano eu vi Glenn na televisão. Imediatamente me lembrei dela, do andar e do sorriso. Procurei seu endereço por toda a casa, bolsos e mais bolsos de paletós, e nada. Passei a noite em claro. Como podia ter esquecido dela?
Na manhã seguinte peguei o trem rumo ao leste. Queria ver aquele sorriso que escondia a vontade de dançar jazz sempre que tocava no café. Precisava vê-la. Cheguei na estação e corri direto ao café. Estava fechado, não abria aos domingos.
“Como pude esquecer? COMO PUDE ESQUECER?”
Fui ao hotel que ficava na esquina e deitei naquela cama de ácaros que mais parecia um formigueiro de tanto que me coçava. Mas não me incomodava, iria vê-la. Na manhã seguinte fui ao café, sentei na mesma mesa e fiquei esperando ela aparecer. Ela não apareceu, fiquei 4 horas e nada. Fui até ao caixa e paguei a conta. Eu já me afastava quando vi uma foto na parede. Todas as garçonetes bem arrumadas lado a lado uma das outras. Quando vi não pude deixar de reconhecer aqueles lindos cabelos pretos. Voltei.
“Senhora, essa moça de cabelo preto… onde ela está?”
Não creio que tenha conseguido esconder meu interesse, o objetivo era parecer uma pergunta casual, mas quem pergunta casualmente onde está uma moça de uma foto pendurada na parede depois de ficar quatro horas olhando para cada pessoa que entrava na cafeteria?
“Ah, a L? Ela se mudou, casou com um rapaz a uns seis meses, acho que mora próximo a Estação 7 em Middletown.”
Acho que não consegui esconder meu sentimento. Meu rosto deve ter murchado de forma tão abrupta que a moça do caixa complementou porque achou que não era o suficiente.
“Ela era uma moça incrível, mas parece que se apaixonou por um desses engravatados que foi embora, prometeu voltar e nunca voltou, pobre coitada, ainda bem que conseguiu casar de novo.”
“[…] se apaixonou por um desses engravatados…”
“[…] se apaixonou […]”
Ela havia se apaixonado por mim e eu a esqueci. Esqueci o único sorriso que me fazia feliz. O único motivo de me fazer tomar aquele café horrível. Esqueci a felicidade e nem a levei ao show do Glenn Miller. Eu prometi.
Algumas vezes eu penso se ela não teria sido o amor da minha vida e por isso vivo numa casa sozinho e acompanhado de livros e mofo. As vezes me pergunto porque esqueci. Por que aceitei aquele emprego? Mas será que a gente pode perder o amor da nossa vida? Eles não são feitos pra durar pra sempre, são interligados pelo destino e nunca se separam?
Uma vez eu fui até a uma casa perto da Estação 7 em Middletown. Era uma casa simples e na calçada havia um menino e uma menina brincando. Eles tinham o sorriso da mãe. Podia até sentir o cheiro de café olhando pra aqueles dois sorrisos pequenos. Não podia mais fazer nada. Dei meia-volta. Ela devia estar feliz agora, como sempre esteve. Ouvi dizer que o seu marido morreu na Segunda Grande Guerra e ela de desgosto pouco depois. Eu ainda me pergunto porque me esqueci.